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quinta-feira, 11 de junho de 2009

Análise do filme Narradores de Javé, segundo a Formadora do CEFAPRO de Cáceres, Herika, dona do Blog Língua Portuguesa no Gestar ll

A história se passa numa região pobre da Bahia, caracterizada pela miséria e pelo abandono, mas na qual os moradores fazem relatos de grandeza, bravura e coragem dos habitantes da região, como prova da honradez desse povo e de sua história.
O resgate da memória da população tem início a partir de um problema: o Vale do Javé seria inundado para ser transformado em uma represa. Como evitar o sumiço do povoado? O ideal seria demonstrar a importância desta localidade e de seus moradores através do Livro da História de Javé, que seria tido como um documento de posse das terras, como algo “científico”, no dizer daquele povo.
Entretanto, escrever não era tarefa fácil em Javé! A única pessoa que detinha o poder da palavra escrita naquelas redondezas chamava-se Antônio Biá, antigo morador, que havia sido banido da cidade por conta dos seus mal-feitos usando a própria escrita: Certa vez, Biá passou a escrever cartas em nome de outros moradores, sem que fosse do conhecimento deles, e endereçá-las a diversas pessoas da cidade, com o intuito de aumentar o movimento nos correios da localidade, justificando, assim, a manutenção de seu emprego. Evidentemente, tal atitude causou inúmeros problemas, com base no teor sempre comprometedor das cartas que ele produzia.
Contudo, diante da temeridade de ver o povoado desaparecer por entre as águas da represa, os moradores decidem ir à cata de Antônio Biá e exigir que ele escreva o livro tão esperado, até mesmo como redenção de seus pecados perante o povo daquele vale. Biá passa, então, a colher relatos dos habitantes, para subsidiar sua escrita. É aí que entram em jogo a imaginação e a inventividade dos javenianos!
A memória se mostra em todas as suas particularidades, em todas as suas singularidades. Ela se apresenta dinâmica, criadora, um jogo entre a lembrança e o esquecimento. As lembranças evocadas são épicas, de grandes feitos, realizados por heróis que variam conforme o narrador. Indalécio e Maria Dina, por exemplo, são personagens recorrentes nas diversas versões apresentadas, embora seus papéis variem de acordo com os interesses de quem os cita. O que deve ser lembrado? O que deve ser esquecido? O que deve ser forjado?
Nesse jogo de interesses Biá também não fica para trás! Ele usa seu poder, como único morador que detém o conhecimento das letras, para tirar proveito das situações, como lhe convém. Um de seus atos é, inclusive, não permitir que o povo tenha acesso ao registro escrito daquilo que eles mesmos estavam rememorando oralmente, num constante refazer do passado constitutivo de sua história, de sua identidade. Entretanto, o que há por trás dessa postura de Antônio Biá é, de fato, a tentativa de encobrir seu fracasso enquanto escritor, pois de tudo que ele ouviu, nada foi por ele registrado no papel!
Quando os moradores descobrem que o livro está em branco, expulsam novamente Biá do vilarejo, que é realmente inundado. Ao presenciarem o Vale do Javé mergulhado nas águas da represa, seus antigos habitantes também mergulham, mas num mar de dúvidas, de incertezas: O que será da vida desse povo a partir daquele momento? Será que sua identidade imergiu junto com o vale? Vulneráveis, em meio a essas hesitações, os javenianos viram alvo fácil para o esperto Antônio Biá, que aproxima-se deles sugerindo que escrevam, então, a historia do fim do Vale do Javé, um resgate da memória do vilarejo que sumiu.
Biá parece argumentar fundamentado nas palavras do historiador Jacques Le Goff, segundo o qual “A memória onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e futuro. (...) a memória coletiva é não somente uma conquista, é também um instrumento e um objeto de poder” (História e Memória, p. 476, 477). O povo, por sua vez, embarca novamente nas intermináveis narrações que misturam memória e imaginação, pois, como destaca Le Goff, “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (História e Memória, p. 476)

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Tradução Bernardo Leitão, et all. 2° Ed. Campinas: UNICAMP, 1992.




Narradores de Javé: uma fábula que vai ao fundo da memória genuína e brasileira.

Como todo grande filme, Narradores de Javé nos envolve numa trama bonita, poética e irreverente. E traz assuntos polêmicos, atuais e dignos de serem discutidos.

Alguns clichês do cinema brasileiro como filmar o Nordeste, fazer cenário em uma pequena cidade com seus tipos e tratar da desigualdade social são alguns aspectos presentes nesse filme. Mas, são trabalhados de maneira inteligente, irônica e, ao mesmo tempo, sutil e encantadora. Poderia caracterizar Narradores de Javé como sendo um filme espetacular. Só mesmo assistindo para saber.

É o que se pode imaginar desde o apresentar dos créditos iniciais são: uma vírgula imperadora e camaleônica surge na tela e uma trilha musical irreverente dá seu ar e graça.Logo, a vírgula teimosa vai virando os dois pontos já conhecidos, sobretudo pelos escolarizados. Depois vem um ponto final floral que, nos trejeitos melódicos, nos nomes inaugurando-se na tela e no olhar festivo do espectador vira ideograma japonês vermelho e babilônico. Surgem então outros nomes e reticências dinâmicas, como bolas de bilhar se alternando, parecem anunciar o que virá: um jogo do destino feito de histórias pinceladas de nossa própria vida que nos une e nos congrega silenciosamente.

Tudo começa, nesse jogo destinado a espectadores felizes, com um personagem vivente e anônimo, que perde um barco e sua viagem. E nessa parada da vida, nessa perda, nesse novo lance, fica à margem de outra viagem, outro jogo a ser vivido: a Saga dos Narradores de Javé.

Nesse ponto de espera uma das frases ditas por um dos personagens -eu mesmo, que não sou das letras vou contar um causo e acho que vocês não vão querer ouvir- inicia a nova viagem: embarcamos todos na trama do filme, mergulhamos nos tempos: o atual, o passado e o imaginário. E nas vidas distintas dos personagens, os moradores de Javé, vilarejo encravado no sertão nordestino, um povoado que parece ainda se situar na Idade Média em tempos de globalização e modernidade.

E na espera do outro barco, do novo dia, vamos revivendo a história desse lugarejo em múltiplos flasbacks que revisitam os íntimos de seus acontecimentos, bordadas pelos depoimentos das memórias de seus moradores. Ficamos orgulhosos de usufruir o trabalho dos atores nas suas mais singelas representações.

Javé, lugar iluminado pelas lembranças e relatos, pelos testemunhos e vivências vê-se subitamente carente de importância, pois seus moradores se apercebem que a riqueza de suas histórias foi esquecida pelo oficial e pelas letras. Pior: prestes a sucumbir, se vêem ameaçados de verem a igreja e seu campanário desaparecerem sob as águas avassaladoras pretendidas pelo progresso tão imperativo e desalmado, na forma de uma represa em e de uma usina hidrelétrica na região.

Assim, sem tábua de salvação, resolvem lutar para impedir o que está por acontecer. Do contar e recontar os causos da história do vilarejo e do resgate dos feitos dos antepassados eles organizam uma ação possível para dar importância ao lugar. E, sobretudo impedir que um lugarejo como aquele desaparecesse sem deixar nenhum rastro, vestígio ou comprovante de vida ilustre.

Nesse contexto é que entra em cena o personagem Antonio Biá, o carteiro da agência de correios de Javé. Fora rechaçado e tripudiado por todos do vilarejo pelo fato de ter escrito e enviado cartas com histórias mais ou menos inventadas a partir da vida dos moradores, movimentando assim a sede dos correios de Javé que estaria fadada à extinção, por conta da ausência de moradores alfabetizados.

Mediante a nova situação de desespero geral, com a estratégia de contar e escrever o oficial e científico como única perspectiva de salvarem a vida do lugar, Biá passa a ter o poder de escrivão.

Como salvar uma terra apalavrada? Como consignar valor à divisa cantada, da posse de terras passadas de pai para filhos sem o oficial dos cartórios, dos carimbos, dos datados e assinados?

Desse dilema nascem e renascem as diferentes versões das tantas lembranças, vivências e percepções presentes nos relatos dos personagens: a odisséia de Javé.

No emaranhado entre a ficção e a realidade vai se construindo a trama do filme, rica em sensações, paisagens, palavras, imagens, tons e cores da linguagem brasileira. Vai se desenhando o projeto de resgate histórico, através do registro das memórias dos seus moradores, os narradores de Javé.

Da colheita dessa narrativa vivida, lembrada, cantada e falada nascerá o livro da salvação? Vivemos todos os momentos tragicômicos no escurinho do cinema com as nossas maiores esperanças.

Eliane Caffé, a diretora do filme e seu elenco ímpar (José Dumont, Nelson Dantas, Nélson Xavier, Rui Resende, Gero Camilo dentre tantos), nos trazem, com criatividade e sutileza, momentos prazerosos de diversão, cultura, arte e alguns elementos importantes para a nossa reflexão: a questão do progresso, da memória e da relação entre oralidade e escrita. Um ponto alto que nos toca no silêncio da emoção é a importância dos indivíduos na História e o valor da memória na vida de um povo.

Há muitos méritos no trabalho da equipe que realizou o filme. Sabemos que Javé, na realidade é Gameleira, cidadezinha baiana, com cerca de 2000 habitantes e que, pelo menos até a época da filmagem, não sabia o que era coleta de lixo. Sabemos que muitos desses habitantes são figurantes e atores do filme.E que se adentraram com a mais absoluta pureza no processo criativo, juntamente com os atores profissionais, que puderam nesse compartilhamento consignar leveza e frescor na verdade de cada um dos personagens.Sabemos também que o roteiro original foi construído com base nos relatos colhidos em territórios brasileiros, mais precisamente no interior mineiro e baiano: as chamadas expedições da memória.

Outros aspectos importantes podem ser destacados nesse filme, depois de nos aventurarmos de corpo e alma e sexto sentido nesse drama encantador.

Um deles, que me foi caro no papel de espectador e educador, diz respeito ao valor e a importância que se dá ao que é escrito em detrimento ao que é falado. No desenrolar do filme também vamos nos apercebendo de uma outra questão importante: a interferência do narrador na história. Nos é demonstrado que existe uma história oficial (a dos livros escolares ou oficiais) e a história dos excluídos.Sabemos que uma história escrita num livro pode ser diferente da história verdadeira, pois é contada sob a ótica de quem a escreve ou narra. É como diz Biá num dos momentos de oficializar o que foi cantado e falado por tantas vozes e tempos: uma coisa é o fato ocorrido, outra coisa é o fato escrito. Ao escrever ou narrar um fato, o autor insere nele suas próprias emoções e interpretações, seus sentimentos e experiências de vida, inventa dados e floreia fatos, pois, de acordo com o famoso ditado popular, quem conta um conto aumenta um ponto.

Ficamos nos perguntando se, com o resgate da memória coletiva, através da memória individual, o Vale de Javé ficará livre de seu destino de ser coberto pelas águas do rio. Ou seja, se a estratégia inusitada de escrever um dossiê que documente os "grandes" e "nobres" acontecimentos da história do povoado justificaria a sua preservação. É que na construção deste dossiê o que ocorre é um duelo poético entre os contadores que disputam com suas versões históricas, fantásticas ou lendárias, o direito de configurarem o patrimônio de Javé.

Narradores de Javé é um filme completamente marcado pela memória, uma memória mítica, produzida pela fala, pela narração. Uma memória dinâmica que suscita o jogo da memória coletiva com a individual, do passado com o presente e o futuro, mostrando a importância da relação entre eles.

Um outro aspecto interessante no filme é a relação entre oralidade e escrita. Vale do Javé é uma comunidade essencialmente oral. A divisão e a apropriação de terras, por exemplo, eram cantadas, ou seja, era o canto que legitimava sua posse e não um documento oficial.

Outra questão abordada pelo filme tem a ver com a destruição e os problemas causados pelo progresso. No caso, a destruição de um grupo, da memória e da cultura de um povo. E isso nos faz refletir sobre a desigualdade social em nosso país, já que a narrativa de Javé reproduz a história de um dos tantos grupos oprimidos.

Ainda mais um aspecto interessante do filme é a variedade linguística do Português. O modo de falar dos personagens, as expressões utilizadas por eles, evidenciam as variações dialetais e as variações de registro que revelam todo um conjunto de informações sobre os personagens e nos envolvem e nos fazem identificar com o mundo vivido por eles.

Uma coisa é coisa acontecida. Outra é coisa escrita. O escrito melhora o acontecido. Com mais este dizer de Biá podemos perceber o papel e o poder que lhe é outorgado, na medida em que passa a ser o escritor. Fiquei pensando, agora que escrevo sobre o filme, no poder que se abre a um memorialista, por exemplo, quando ouve as palavras do personagem e entrevistado e cria, no seu escrito, o que chamamos de memórias literárias: um misto e amalgamado de realidade e ficção que se forjam numa só linha e entrelinha, para dar sentido, significância e beleza.

Poderíamos nos perguntar, diante de quaisquer versões apresentadas de um único fato ou história: qual delas é a que vale?Mais ainda: qual das culturas é a melhor?Em qual das religiões Deus é mais verdadeiro?

Penso eu que sempre nos deparamos com uma situação similar à dos narradores de Javé, tentado salvar o que somos, destacar a nossa glória e a nossa luta frente ao que nos é valoroso. Sempre estamos tentando salvar o sino que brada a nossa voz e guarda simbolicamente as marcas da História para ser novamente inaugurado em um novo lugar.

Antonio Gil Neto

Publicado em: 23/07/2009

Análise da crônica Circuito Fechado

A crônica Circuito Fechado é um texto narrativo curto, cujo tema é o cotidiano. É um texto só de palavras, na qual você tem que deduzir aquilo que o autor quer dizer. Pode-se deduzir que se trata da rotina de alguém desde que acorda até a hora em que volta para a cama à noite. É um texto interessante, pois nos leva a analisar a mensagem que o autor quer nos passar.

CIRCUITO FECHADO - Ricardo Ramos

CIRCUITO FECHADO


“Ter haver. Uma sombra no chão... Um silêncio por dentro, que olha e lembra, quando se engarrafam o trânsito, os dias, as pessoas... Um cartão de identidade cinzento e uma assinatura floreada, só ela. Um lugar à mesa. Uma tristeza, um espanto, as cartas do baralho, passado, presente e futuro , onde estão? Uma resposta adiada. Uma vida em rascunho, sem tempo de passar a limpo.” (Circuito Fechado 4)
Ricardo Ramos

Ricardo Ramos nasceu em Palmeira dos Índios, em 1929, ano em que o pai Graciliano Ramos exercia a função de prefeito. Formado em Direito, destacou-se como homem da propaganda, professor de comunicação, jornalista e escritor em São Paulo.
Sua obra literária é extensa: contos, romances e novelas, e representa, com destaque, a prosa contemporânea da literatura brasileira.
O autor ressaltava a importância de ser íntimo do personagem, de conhecer a sua verdade. Considerava que era apenas um intérprete da vida que vivia e do mundo que compreendia - inventava um pouco, mas com base na realidade. As referências pré-conscientes da conduta cotidiana constituem a fonte para elaboração dos seus textos literários.
“Carteira, níqueis, documentos, caneta, chaves, lenço, relógio, maço de cigarros, caixa de fósforos. Jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule, talheres, guardanapo. Quadros. Pasta, carro. Cigarro, fósforo. Mesa e poltrona, cadeira, cinzeiro, papéis, telefone, agenda, copo com lápis, canetas, blocos de notas, espátula, pastas, caixas de entrada, de saída, vaso com plantas, quadros, papéis, cigarro, fósforo.”(Circuito Fechado 1).
Os contos da obra Circuito Fechado surpreendem desde o primeiro, quando a narrativa é composta somente por substantivos e retratam, sem a presença de sujeitos, ações ou adjetivos, fielmente o cotidiano.
“Não. Não foi o belo, quase nunca, nem ao menos o bonito, porque tudo se veio esgarçando em rotina, sombra com vazio... Não foi o momento certo, a maior parte aconteceu de repente, ou cedo, ou tarde, afinal não se repetiu... Não foi o amor, a certeza, o amanhã, foram as palavras que representam, a idéia de, o conceito, enfim a sua redução. Não foi pouco nem muito, foi igual. Não foi sempre, nem faltou, foi mais às vezes. Não foi o que, foi como, e onde, e quando. Não, não foi.” (Circuito 5).
A vida em círculos. Caminhos que se entrelaçam e se fecham em acomodadas estruturas. Escrever o próprio enredo com o descompromisso de um rascunho, com a insatisfação de não ter tempo para passar a limpo. A originalidade que se perde nos substantivos cotidianos, na inconstância dos tempos, nas sombras...
O espelho de nosso narcisismo não se restringe à imagem, abrange conceitos, palavras... E eis que, narcisos, estamos presos à imagem do lago, também um circuito fechado, ouvindo a repetição de nosso pensamento, sem conseguir surpreender e nos libertar da corrente da rotina, da transmissão de inexpressivos atos reduzidos.
Há a sombra que imortaliza o objeto... Há a literatura que amadurece o pensamento e alerta o leitor para a continuidade de sua trajetória... Ricardo Ramos, em Circuito fechado, mostra um mundo a ser desbravado, mostra a necessidade de criar a linguagem nas entrelinhas com originalidade, para que no final do conto, o leitor possa interpretar e finalizar com outras palavras: Não foi a redução, foi a realização de um presente. Foi a sombra da percepção do ser e da sua extensão. Sim! Foi a obra possível.
A vida nos obriga ao enquadramento nas trajetórias sociais, devemos cumprir nossas obrigações cotidianas, sem esquecer que, após o circuito fechado, existe a nossa privacidade com todas as conquistas que conseguimos quando nos libertamos da pobre substantivação do ser e nos tornamos sujeitos ativos de ações criativas e adjetivados com expressões de personalidade.
Pela janela, observamos a natureza. A inconsciência e a insubordinação de alguns animais os libertam da previsibilidade. Talvez, a racionalidade, alicerçada em bases sólidas, possa servir de inspiração para sonhos ou metáforas. A letra do músico e compositor Renato Teixeira – Cavalo bravo – mostra, sem circuito de palavras, o outro lado do circuito fechado, o outro caminho que precisamos de coragem para arriscar...

“Olhando o cavalo bravo no seu livre cavalgar, passou-me pela cabeça, uma vontade louca de também ir para o cavalgar... Coração atrevido, pernas de curioso, olhos de bem-te-vi, ouvidos de boi manhoso, e lá vou eu mundo a fora. montado em meu próprio dorso...”
Renato Teixeira
Helena Sut



Publicado em 24/01/2005
O TEXTO CIRCUITO FECHADO É UM TEXTO NARRATIVO CURTO,CUJO TEMA É O COTIDIANO

TEXTO CIRCUITO FECHADO

Você provavelmente está acostumado a ver a palavra texto. Mas sabe qual o seu conceito? Para entendê-lo, pense nas duas seguintes situações:

*Alfredina Nery

1) Você foi visitar um amigo que está hospitalizado e, pelos corredores, você vê placas com a palavra "Silêncio".
2) Você está andando por uma rua, a pé, e vê um pedaço de papel, jogado no chão, onde está escrito "Ouro".

Em qual das situações uma única palavra pode constituir um texto?

Na situação 1, a palavra "Silêncio" está dentro de um contexto significativo por meio do qual as pessoas interagem: você, como leitor das placas, e os administradores do hospital, que têm a intenção de comunicar a necessidade de haver silêncio naquele ambiente. Assim, a palavra "Silêncio" é um texto.

Na situação 2, a palavra "Ouro" não é um texto. É apenas um pedaço de papel encontrado na rua por alguém. A palavra "Ouro", na circunstância em que está, quer dizer o quê? Não há como saber.

Mas e se a palavra "Ouro" estiver escrita em um cartaz pendurado nas costas de um daqueles homens que ficam nas esquinas do centro das cidades grandes que anunciam a compra de ouro? Aí sim, nessa situação, a palavra "Ouro" constitui um texto, porque se encontra num contexto significativo em que alguém quer dizer algo para outra pessoa (no caso, vender/comprar ouro) e, então anuncia isso.

Texto é, então, uma seqüência verbal (palavras), oral ou escrita, que forma um todo que tem sentido para um determinado grupo de pessoas em uma determinada situação.

O texto pode ter uma extensão variável: uma palavra, uma frase ou um conjunto maior de enunciados, mas ele obrigatoriamente necessita de um contexto significativo para existir.

Constituindo sentidos
Agora, Leia o texto a seguir de modo a aprofundar ainda mais o conceito de "texto".

Circuito FechadoChinelos, vaso, descarga. Pia, sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo; pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata, paletó. Carteira, níqueis, documentos, caneta, chaves, lenço, relógio, maços de cigarros, caixa de fósforos. Jornal. Mesa, cadeiras, xícara e pires, prato, bule, talheres, guardanapos. Quadros. Pasta, carro. Cigarro, fósforo. Mesa e poltrona, cadeira, cinzeiro, papéis, telefone, agenda, copo com lápis, canetas, blocos de notas, espátula, pastas, caixas de entrada, de saída, vaso com plantas, quadros, papéis, cigarro, fósforo. Bandeja, xícara pequena. Cigarro e fósforo. Papéis, telefone, relatórios, cartas, notas, vales, cheques, memorandos, bilhetes, telefone, papéis. Relógio. Mesa, cavalete, cinzeiros, cadeiras, esboços de anúncios, fotos, cigarro, fósforo, bloco de papel, caneta, projetos de filmes, xícara, cartaz, lápis, cigarro, fósforo, quadro-negro, giz, papel. Mictório, pia, água. Táxi. Mesa, toalha, cadeiras, copos, pratos, talheres, garrafa, guardanapo, xícara. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Escova de dentes, pasta, água. Mesa e poltrona, papéis, telefone, revista, copo de papel, cigarro, fósforo, telefone interno, externo, papéis, prova de anúncio, caneta e papel, relógio, papel, pasta, cigarro, fósforo, papel e caneta, telefone, caneta e papel, telefone, papéis, folheto, xícara, jornal, cigarro, fósforo, papel e caneta. Carro. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Paletó, gravata. Poltrona, copo, revista. Quadros. Mesa, cadeiras, pratos, talheres, copos, guardanapos. Xícaras, cigarro e fósforo. Poltrona, livro. Cigarro e fósforo. Televisor, poltrona. Cigarro e fósforo. Abotoaduras, camisa, sapatos, meias, calça, cueca, pijama, espuma, água. Chinelos. Coberta, cama, travesseiro.


(Ricardo Ramos)
Você considera que em "Circuito fechado" há apenas uma série de palavras soltas? Ou se trata de um texto? Por quê?

Na verdade, trata-se de um texto. Apesar de haver palavras, aparentemente, sem relação, numa primeira leitura, é possível dizer, depois de outra leitura mais atenta, que há uma articulação entre elas.

Vamos pensar mais sobre isso... Em "Circuito fechado" há, quase que exclusivamente, substantivos (nomes de entidades cognitivas e/ou culturais, como "homem", "livro", "inteligência" ou palavras que designam ou nomeiam os seres e as coisas).

Verifique que pela escolha dos substantivos e pela seqüência em que são usados, o leitor pode ir descobrindo um significado implícito, um elemento que as une e relaciona, formando o texto.

Podemos dizer que este texto se refere a um dia na vida de um homem comum. Quais palavras e que seqüência nos indicam isso?

Note que no início do texto, há substantivos relacionados a hábitos rotineiros, como levantar, ir ao banheiro, lavar o rosto, escovar dentes, fazer barba (para os homens), tomar banho, vestir-se e tomar café da manhã.




“Chinelos, vaso, descarga. Pia. Sabonete. Água. Escova, creme dental, água, espuma, creme de barbear, pincel, espuma, gilete, água, cortina, sabonete, água fria, água quente, toalha. Creme para cabelo, pente. Cueca, camisa, abotoaduras, calça, meias, sapatos, gravata, paletó. Carteira, níqueis, documentos, caneta, chaves, lenço, relógio, maço de cigarros, caixa de fósforos.”

Já no final do texto, há o voltar para casa, comer, ler livro, ver televisão, fumar, tirar a roupa, tomar banho/escovar dentes, colocar pijama e dormir.



“Carro. Maço de cigarros, caixa de fósforos. Paletó, gravata. Poltrona, copo, revista. Quadros. Mesa, cadeiras, pratos, talheres, copos, guardanapos. Xícaras, cigarro e fósforos. Poltrona, livro. Cigarro e fósforo. Televisor, poltrona. Cigarro e fósforo. Abotoaduras, camisa, sapatos, meias, calça, cueca, pijama, espuma, água. Chinelos. Coberta, cama, travesseiro.”

Descobrimos que a personagem é um homem também pela escolha dos substantivos. Parece que sua profissão pode estar relacionada à publicidade.



“Creme de barbear, pincel, espuma, gilete [...] cueca, camisa, abotoadura, calça, meia, sapatos, gravata, paletó [...] Mesa e poltrona, cadeira, cinzeiro, papéis, telefone, agenda, copo com lápis, canetas, blocos de notas, espátula, pastas, caixas de entrada, de saída [...] Papéis, telefone, relatórios, cartas, notas, vales, cheques, memorandos, bilhetes [...] Mesa, cavalete, cinzeiros, cadeiras, esboços de anúncios, fotos, cigarro, fósforo, bloco de papel, caneta, projetos de filmes, xícara, cartaz, lápis, cigarro, fósforo, quadro-negro, giz, papel.”


Também ficamos sabendo que na casa da personagem há quadros, pois o narrador usa a palavra duas vezes: no momento do café e na volta para casa. No escritório há "Relógio". Escolha intencional do autor, talvez para relacionar relógio e trabalho, trabalho e rotina.

Depreendemos que o homem é um grande fumante, basicamente, pelo número de vezes em que o narrador fala desse hábito, em vários momentos do dia da personagem: 14 vezes. Além disso, é interessante notar como há sempre a referência à dupla "cigarro e fósforo".

A palavra que explicita o início da ação do homem, ou da atuação da personagem, num dia de sua rotina é "chinelos", usada no início do texto para mostrar o momento do acordar/levantar e depois a hora de dormir.

Há também uma marcação de mudança de espaço, por meio dos termos "carro", usado como que mostrando o horário de sair de manhã e a volta para casa, à noite. No meio do texto há também o uso de um "táxi", provavelmente uma saída do trabalho: um almoço? Um jantar? Uma visita a um cliente?

Enfim, "Circuito fechado" é uma crônica - um texto narrativo curto, cujo tema é o cotidiano e que leva o leitor a refletir sobre a vida. Usando somente substantivos, o autor do texto produziu um texto que termina onde começou. Essa estrutura circular tem relação com o título ("Circuito fechado") e com os dias atuais? Sem dúvida nenhuma, podemos compreender suas relações, não é mesmo? O cotidiano repete-se, fecha-se em si mesmo a cada dia. Rotinas...

Para você pensar
Você sabia que o conceito de texto não se limita à linguagem verbal (palavras)? O texto pode ter várias dimensões, como o texto cinematográfico, o teatral, o coreográfico (dança e música), o pictórico (pintura), etc. Leia a reprodução de um famoso quadro de Van Gogh chamado "Noite estrelada". Atente para suas linhas, suas cores, sua perspectiva. Fazendo isso, você começa a lê-lo...

*Alfredina Nery é professora universitária, consultora pedagógica e docente de cursos de formação continuada para professores na área de língua, linguagem e leitura.