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sábado, 1 de outubro de 2011

UMA CARTILHA MACHUCADA





UMA CARTILHA MACHUCADA

Antonio Gil Neto

Minha cidade era bem pequena. Em meio ao breve casario que nela se espalhava, entre jardinzinhos e quintais, morava numa casa com varanda e trepadeira. Na ligeireza do olhar já se via a pracinha com suas árvores variadas, a igreja e o coreto. E ao lado dela, imponente, o Grupo Escolar. Fazia alguns meses que me enredavam nos preparativos para me iniciar na vida escolar. Foi naquele março encalorado de sorrateiras chuvaradas quando inaugurei os meus sete anos completinhos na escola. Sempre passava com olhos enviesados por aquele casarão amarelado com sua fileira de janelões olhando para a praça da matriz. Ladeado por dois portões, abria e se fechava como relógio londrino ao som do badalar da sineta, chacoalhada impecavelmente pela Dona Nenê. Era um bando de crianças saindo pelo portão da esquerda e num logo mais, outro bando entrando. Sempre ao meio-dia e no rigor de todos os dias, de segunda a sábado, quentes ou frios, secos ou chuvosos. Uma ladainha imperceptível, necessária. Afinal iria conhecer de perto a intimidade daquele casarão misterioso e convidativo. Seria engolido por um dos seus portões e mataria minha curiosidade, instigada pelo pessoal de casa. Antes, pelo Natal se iniciaram os preparativos. Quando fui sondar os sapatos à janela com presentes deixados pelo Papai Noel, vi que eram poucos, como sempre. Mas, naquele ano, a maioria tinha ar da nova aventura: um estojo de plástico verde escuro e uma bolsa de couro marrom. De quebra, um pião listrado. Lembrei-me logo da viagem que meus pais haviam feito com minha irmã e de quando entraram no trem com malas marrons. Vi a fumaça desaparecer com eles e eu ficar parado com a lembrança deles me apertando o peito. Em fevereiro, após o Carnaval, meu namoro com os apetrechos do Bazar da Dona Chiquinha foi concretizado por minha mãe. Comprou outras coisas para ocupar o lugar da espera: cadernos com linhas e desenhos multicores na capa, régua, uma caixa de lápis de cor variada, lápis preto, borracha para apagar e deixar tudo como no começo. Já estava com arsenal prontinho para a nova peripécia. Assim, num primeiro de março, lá fui eu tragado voluntariamente para a aventura escolar. Lá dentro, no imenso pátio semeado de árvores altas ficamos separados em filas. Os meninos com mais de uma fitinha azul marinho costurada no bolso cantavam com a mão no peito. O ventinho miúdo nos acolhia, espalhava a novidade e balançava os imensos laços de fita, branquíssimos, que as meninas deixavam nas cabeças feito borboletas alegres compradas talvez no bazar da Dona Chiquinha. Veio o seu Oswaldo falar do primeiro dia das aulas, vieram as professoras vestidas para quermesse para pegar suas filas. A minha foi a última a dizer bom dia e a pedir com sorriso para que entrássemos. Passamos por um corredor, logo uma sala com duas senhoras, como as minhas tias, batendo à máquina como quem trabalhava em escritório. Depois outro com salas de portas fechadas. Ainda caminhamos por outra sala ampla e escura com cheiro esquisito de álcool velho. Parecia guardar um mundaréu de coisas empilhadas, penduradas, em caixas, em armários, em mesas com tampa de vidro. Era uma espécie de bazar ainda não explorado. Nossos passinhos em uníssono envergavam um pouco as tábuas do assoalho. Me parecia que alguma coisa nos vidros das estantes ainda tinha alguma vida. Por que abrigar aquele mundaréu de coisas? Passamos ainda outro corredor onde havia no alto um relógio com um barulho bem alto marcando seu tique-taque solene. Muito diferente do que havia na casa dos meus avós. Quem dizia as horas era um passarinho que nele morava. Chegamos na nossa sala. Sentamo-nos dois a dois nas carteiras indicadas pela Dona Susana e fomos expondo orgulhosos e temerosos os nossos pertences para a grande estreia. Ela nos explicava com delicadeza que iríamos aprender a ler, a escrever e a fazer contas. (Como os rabiscos que meu avô fazia num papel quando vendia louças). Disse efusiva e confiante que uma semana mais e receberíamos a cartilha. O que seria isto? Minha mãe foi me explicando que era um livro onde estavam guardadas as letras. E que iria usar para aprender tudo de que precisava. Na verdade eu nem me espantava muito com as letras porque já eram minhas velhas conhecidas. Meu tio havia me apresentado a elas quando ficava com ele no armazém. Ele tinha que escrever coisas nos cadernos grandes da escrivaninha e também nas cadernetinhas que cada freguês trazia para marcar tudo o que havia comprado. Para um dia se lembrar e pagar. Já escrevia meu nome e do pessoal de casa. E sem faltar uma letra! Muito diferente dos outros meninos que ficavam apavorados com a idéia de ter que lidar com elas, estranhas figuras. O que me espantava, me deixava enfarado era toda a classe, num longo silêncio de ouvir barulhinhos bons, ficar copiando e imitando o capricho da lousa as tantas letras, enfileiradas, tantos números, tantas vezes... Logo a cartilha chegou. Foi como uma pequenina festa. O diretor entrou na sala, mostrou uma rapidamente e a nossa professora foi chamando um por um e entregando cada cartilha a seu dono. Logo vi que a minha era igual a de todos: tinha na capa esverdeada uma menina com tranças bem sorridente nos olhando o tempo todo. E lá começaram as lições. A primeira para mim foi fichinha. Soube logo de cara tudo sobre a pata que nadava naquela página. Conseguia ver mais: que estava nadando feliz com seus filhotes, num riozinho manso e com taboa, igualzinho ao da chácara do Seu Afonso onde a gente ia ver na sua leve correnteza os minúsculos peixinhos e seu mundão de sapinhos bebês. E vislumbrei um céu bem azul. Mais um burburinho de água indo para seu destino. E de passarinhos, de cavalos, de vacas. O estampado naquele desenho em preto e branco ia virando vida. Como um cartaz de filme que ainda passaria. Dona Susana ficava naquela primeira lição por vários dias. Todos copiavam meticulosamente, enchendo linhas e linhas das páginas de “pata - pa” “nada - na”. Chamava um a um na lousa para conferir se sabíamos de fato grudar uma sílaba na outra e assim surgir palavras que viravam desenhos em nossas cabeças: “ne-nê” , “pa-pai”. Muitos sofriam muito como isso. Empacavam. Mais que cansado de tanto escrever “pas” e “nas”, minúsculos e maiúsculos, resolvi fazer uso dos apetrechos ainda intactos: com a primeira lição aberta sobre a mesa da sala fiz misérias com os lápis de cor: pintei o céu de azul claro, fiz um sol amarelo que não tinha, pintei a taboa de verde e marrom, dei vida a água em tons de azul, claro e escuro misturados. E pintei a pata da cor do sol inventado. Enfim ficara com minha cartilha em cinemascope e tecnicolor. Depois do visto com lápis vermelho nas duas páginas do caderno de casa com tarefa impecável, exibi sem falar e orgulhosamente minha façanha extra de aventureiro da escola: compenetrado falsamente no desenho minucioso da envergadura de cada letra no caderno de classe deixei a minha obra prima exposta em cima da carteira. As cores gritavam na minha alma. Levei a maior bronca do mundo. Certa de cumprir seu dever absoluto, Dona Susana ordenou resoluta: tinha de apagar tudo. Tudinho. Usei a borracha e também um naco do miolo do pão com ovo batido que dormia na bolsa. Pior foi que nada disso dava conta de resolver a limpeza. Um rasgo feito relâmpago imenso atravessou a página em recuperação. Chorei baixinho e pequeninas lágrimas viravam água de verdade para a pata nadar numa nascente sem pecado. Não sei se a minha professora se arrependeu, mas o jeito que ela arrumou para acabar com aquela história foi colocar duas imensas tiras de esparadrapo na ferida aberta da primeira lição novinha em folha. Como se não bastasse, naquele dia sofri mais uma vez por conta da cartilha. Uma menina loirinha e franzina, a Mariinha, chamada à lousa, não sabia ainda distinguir um “pa” de um “na”. Ficou em pé por um bom tempo tremendo mansinho e com o rosto se emporcalhando do branco do giz de tanto passar a mão tremida para espantar o ruim de ficar ali esperando as letras lhe dizerem o mistério que a professora tanto queria. Era um espectro embalsamado quando outro fio de água se inaugurava e escorria pelas pernas de Mariinha encharcando seus pés e desaparecendo no primeiro vão do assoalho. Era um náufrago. Resolvi que a minha aventura na escola havia chegado ao fim. Era hora de partir para outra e sair daquele início, com cartilha machucada. Não queria sentir pena e raiva ao mesmo tempo. Era melhor ficar em casa, brincar no quintal com o Duque e na varanda com Mandrake, o periquito. Sem hesitar, compenetrado e silencioso, fui colocando um a um os meus pertences escolares na bolsa, inclusive a cartilha com curativo. Levantei-me sem pedir a licença obrigatória e fui embora. Só fechei os olhos ao passar naquela sala escura, com medo maior e com cheiro bem mais forte. Tive de pular o muro por conta do portão fechado, mas isso era coisa que bem sabia fazer. Mal sabia que naquele ano muita coisa ainda iria acontecer: receberia meu primeiro livro, aprenderia a declamar versos com gestos de artista em meio a palavras quase que estrangeiras, esperaria as surpresas das gravuras saídas de um armário proibido para imaginar histórias, aprenderia um latim sem decifrar, só para responder ao padre na hora das missas dominicais. E no depois, quem diria que ainda seria professor e iria escrever e desenhar em livros de verdade!