Cancionila Janzkovski Cardoso – UFMT
A indagação sobre o processo de aprendizagem da escrita que pretendo desenvolver neste trabalho está apoiada no pressuposto, resultado de pesquisas sobre a gênese e o uso de signos, de que a fala predomina e modela a vida interior, influenciando toda a dimensão simbólica do ser humano. Desse modo, a compreensão da linguagem escrita é efetuada, primeiramente, através da linguagem falada; no entanto, gradualmente essa via é reduzida, abreviada, e a linguagem falada desaparece como elo intermediário. (Vygotsky, 1984:131).
A partir desse pressuposto mais geral, e no intuito de aprofundar o estudo deste processo, Schneuwly formula a sua hipótese central: a produção de textos escritos pressupõe a transformação de um sistema já existente, a linguagem oral, pela diversificação e complexificação de operações de linguagem de diferentes níveis para situações de comunicação cada vez mais complexas. (Schneuwly, 1988:50).
Para este autor, aprender a produzir textos escritos implica sempre aprender a agir linguageiramente em situações novas.(op. cit.). Do ponto de vista psicológico trata-se de fazer funcionar e dominar nas diferentes situações de comunicação escrita dois processos: a) a planificação auto-gerada do texto; b) a instauração de uma relação mediata em relação à situação material de produção. No que concerne ao primeiro, é necessário compreender que o controle e a gestão da produção não se ancoram mais na análise da produção de linguagem na situação; é necessário desenvolver uma instância de controle e de gestão autônoma, permanente, que funcionará durante toda a produção do texto. Igualmente, o outro processo implica que o cálculo e a criação das origens textuais (temporais, espaciais, argumentativas) funcionam independente da situação particular. No nível psicológico trata-se de um funcionamento que exige a criação de novas instâncias de cálculo, de gestão e de controle, que já se encontram de maneira rudimentar nas situações ligadas ao uso da oralidade. Trata-se de conceber a linguagem escrita como a álgebra da linguagem (Vygotsky), cuja apropriação permite à criança ascender ao plano abstrato e mais elevado da linguagem, ao mesmo tempo que reorganiza o sistema psíquico anterior da linguagem oral.
A tese desenvolvida pelo autor é a de que "o gênero discursivo é uma ferramenta" de desenvolvimento de capacidades individuais. (Schneuwly, 1998:157). Retomando a noção de gênero na perspectiva de Bakhtin, o autor assim a resume: (i) cada esfera de trocas elabora tipos relativamente estáveis de enunciados: os gêneros; (ii) três elementos os caracterizam: conteúdo temático – estilo – construção composicional; (iii) a escolha de um gênero se determina pela esfera, as necessidades da temática, o conjunto dos participantes e a vontade enunciativa ou intenção do locutor. (Schneuwly, 1998;159/160).
Depreende, assim, desta definição três elementos centrais: (i) a elaboração de uma base de orientação para uma ação de linguagem (tendo em vista objetivo, destinatários, conteúdo); (ii) esta base conduz a escolha de um gênero no interior de um conjunto de possíveis; (iii) mesmo "mutáveis, flexíveis", os gêneros definem o que é dizível (e inversamente, o que está por se dizer define a escolha de um gênero); eles têm um plano composicional, ou seja, uma certa estrutura definida por sua função; eles são caracterizados por um estilo, que é necessário caracterizar não como efeito da individualidade, mas como elemento de um gênero.
Unidades lingüísticas: marcas da estrutura textual
Considerando os muitos trabalhos existentes sobre a linguagem escrita das crianças, e em especial os da psicologia cognitiva, Schneuwly (1988:55), embora reconheça os avanços proporcionados por essas pesquisas, caracteriza esses avanços como a ponta do iceberg do processo de escritura, propondo-se a evidenciar as múltiplas operações sobre as quais se apoiam os processos conscientes. A partir da hipótese de que esses processos se desenvolvem, mas também se transformam, esse autor pretende demonstrar como o desenvolvimento de mecanismos de controle globais depende, em grande parte, da apropriação de técnicas e de meios de linguagem diferenciados. Para ele a estrutura subjacente ao funcionamento da escritura pode tornar-se visível com a descrição e a análise das técnicas e dos meios de linguagem, exatamente no único nível que nos é acessível, ou seja, por meio das unidades lingüísticas utilizadas nos textos.
Entendo que essa via de análise da produção escrita - nova e pouco explorada - que operacionaliza o conceito de mediação semiótica por meio das unidades lingüísticas textuais, pode revelar-se muito fecunda, tanto do ponto de vista teórico quanto prático. Teoricamente: porque concebe a linguagem escrita como construção social balizada por inúmeros fatores - as práticas de escrita de uma determinada sociedade, as origens interpsicológicas do processo, as relações semióticas que tornam possível o acesso à linguagem e, ainda, explicam prováveis reestruturações do funcionamento psíquico em seu conjunto. Praticamente: porque ao desvendar processos e descortinar as operações de textualização pode instrumentalizar os professores a interferir de forma mais produtiva na área da produção textual que é em nossos dias, ao mesmo tempo, a mais requisitada em termos de ensino e a mais frágil em termos de formação profissional.
No trabalho empírico que se segue, à luz das pesquisas já citadas, tentarei explicitar o funcionamento de uma unidade lingüística, traço de operações de textualização, em textos narrativos: a pontuação. A escolha dessas marcas que aparecem na superfície textual está vinculada à hipótese de que elas se constituem, mesmo nos primeiros textos infantis, em indicadores da estrutura hierárquica dos textos. Sua apreensão traduz formas de planificação cada vez mais sofisticadas.
Nesse sentido, para explorar do ponto de vista desenvolvimental a capacidade em aplicar operações textuais complexas e, notadamente, intervir como enunciador em um texto, utilizei um conjunto de quatro textos narrativos, que contempla quatro anos de escolarização de uma criança.
A hipótese que sustenta a análise é a de que o caráter narrativo do texto se manifesta por uma centração do autor sobre um ponto de vista único que facilita a seleção das informações e de um agenciamento particular dos encadeamentos das informações. Isso se manifesta em diversos níveis: na estrutura do texto; nos tipos de relações estabelecidas entre os diferentes elementos do texto; nas intervenções diretas do enunciador no texto. O assumir o ponto de vista narrativo supõe uma capacidade de planificação textual relativamente desenvolvida e uma capacidade de distanciação em relação ao texto. Estas capacidades existem em menor escala no início do processo de escolarização e vão-se ampliando em quantidade e importância, mostrando o processo de apreensão de novas possibilidades da língua.
Linearização e segmentação
Todo discurso remete a um referente (aquilo que é descrito ou relatado ou argumentado) que é objeto de uma representação mental do emissor da mensagem. Esta representação mental - "modelo de situação" (Van Dijk & Kintsch, 1992) - é sempre multidimensional. As operações cognitivo-lingüísticas desencadeadas no momento da produção de um texto, seja ele oral ou escrito, devem tomar uma forma estritamente linear e dependente do tempo: devem se materializar em unidades lingüísticas e, em um dado momento, uma só informação pode ser emitida. O problema essencial com o qual se debate o locutor/escritor é o de compatibilizar a estrutura linear das informações com a estrutura claramente não-linear e multidimensional do modelo mental.
Para Schneuwly nesse nível de funcionamento encontram-se dois processos em forte interação: por um lado a busca e o posicionamento de itens lexicais - a referenciação; por outro lado, a escolha/assunção e o funcionamento de unidades lingüísticas dependentes do co-texto (anáfora, elipse, dêixis) - a textualização.
As operações de textualização-linearização expressam, pois, a materialização do texto, ou seja, a construção efetiva do canal textual, o colocar em frases e em palavras. O autor distingue três tipos de operações de textualização: as operações de conexão/segmentação; as operações de coesão; as operações de modalização. Cada uma delas comporta subconjuntos específicos de operações para realizar a função que lhe é própria e se realiza por meio de categorias particulares de unidades lingüísticas.
Pontuação: valor(es) de sentido
A característica comum das operações de conexão/segmentação é, por um lado, "pontuar" o discurso, dividi-lo em partes e, ao mesmo tempo, funcionar como "cimento" que rejunta as unidades atomizadas resultantes da referenciação; por outro lado, articular essas unidades ao contexto. Sua característica formal é de agir sobre os núcleos predicativos, distribuindo-se, em conseqüência, no nível interproposicional ou predicativo. As unidades essenciais, traços das operações de conexão e de segmentação, são os organizadores textuais e os sinais de pontuação.
Os sinais de pontuação são utilizados, sobretudo, para delimitar ou segmentar as unidades textuais do tamanho da expressão, da proposição, da frase e do parágrafo. A habilidade para efetuar uma segmentação que aumenta a legibilidade do texto produzido é, sem dúvida, uma característica importante de um bom escritor. A utilização do sistema de pontuação está em interação com outros níveis e tipos de operação: com a planificação (fases do texto: ponto, vírgula, ponto e vírgula, dois pontos, alínea) e a ancoragem (níveis de funcionamento do texto: aspas) de uma parte; com a modalização (ainda as aspas, parênteses, reticências, pontos de exclamação e de interrogação) de outra parte. Importante lembrar que essas operações funcionam em dependência estreita com a escolha do destinatário e do objetivo da atividade de linguagem em curso. (Schneuwly, 1988:75).
A hipótese central de Fayol (1997) é a de que existe uma estreita relação entre a estrutura hierárquica do conteúdo de um texto e a pontuação. A pontuação é o indicador de superfície do grau de distância (ou de ligação) entre os constituintes da representação mental subjacente ao texto: quanto mais os estados/acontecimentos seriam intimamente ligados mais raro e mais fraco (i.é., ausência de marca ou vírgula) seria o nível da pontuação; quanto mais os estados/acontecimentos seriam independentes uns dos outros, mais freqüente e mais alto seria o nível da pontuação (i.é., alínea). De fato, ele encontra uma correlação importante entre força de pontuação (alínea, ponto, ponto e vírgula, vírgula) e grau de ruptura entre ações adjacentes: quanto mais forte é a ruptura, mais forte é a pontuação, tanto nos dados com crianças como com adultos.
Essa ferramenta de ordem essencialmente textual, que intervém apenas na escrita (embora possa ser considerada como o equivalente das pausas no desenvolvimento do discurso oral), é definida por Nina Catach como
conjunto de signos visuais de organização e apresentação que acompanham o texto escrito, interiores ao texto e comuns ao manuscrito e ao texto impresso; a pontuação compreende algumas classes de signos gráficos discretos que formam um sistema, completando ou suplementando a informação alfabética.(Catach, 1980:21).
A lista daí decorrente abrange: vírgulas; ponto e vírgula; pontos final, de exclamação e de interrogação; reticências; dois pontos; aspas; travessão; parênteses; colchetes; alíneas; itálicos; sublinhado; asteriscos.
Resumindo, temos dois aspectos a considerar como função das unidades de pontuação: colocar em evidência quem fala no texto (no diálogo, nas citações, etc.) e organizar o conjunto do texto no nível global (partes do texto) e naquele da unidade de base do texto: a frase.
Levando-se em conta a função das marcas, sua freqüência, natureza e posicionamento, pode-se levantar a hipótese de que a utilização de sinais de pontuação traduz a intenção das crianças no sentido de intervir em seus próprios textos.
4. Pontuando ao longo do tempo: uma complexa conquista
Apurar o olhar para um processo individual pode ser esclarecedor. A escolha recaiu em Paulo tendo em vista que seu processo é particularmente interessante, por ter como característica um ponto de partida médio (1ª série) e um ponto de chegada claramente superior (4ª série) ao da maioria das 14 crianças em termos da freqüência da pontuação. Assim, serão analisados quatro textos, produzidos ao longo da 1ª à 4ª série do ensino fundamental: o primeiro texto, destinado aos pais, é uma narrativa de parte do filme "Tempos Modernos" (de Charles Chaplin), elaborado logo após as crianças tê-la assistido e recontado oralmente; o segundo texto é um relato de experiência (um sonho) e tinha a professora/pesquisadora como interlocutora; o terceiro texto é uma narrativa da história "Pinóquio" elaborada para a professora; o quarto texto, dirigido a uma interlocutora distante (professora Magda), é um relato de experiência (a representação de uma peça de teatro), elaborado cinco dias após a apresentação na escola para as crianças menores, fazendo parte, ainda, da situação de produção, uma discussão em sala sobre a experiência vivenciada.
(1) Charles Chaplin
ia uma mulhe e un homem
a mulhe do Chaplin pegou e arrumou
um seviso do gaçon e o garsom ele pode
trabalha aqui sim .
ai né a pulicia pliculando a mulhe do
Chaplins a pulicia foi ai Chaplin e a
mulhe dele fujiu a mulhe do homen
o homen sigurou a porta para pulicia
não pega ele e a mulhe dele .
ai Chaplin derrubou as cadeira ai as
policia cairam nas cadeia e saiu das
cadeiras e o Chaplims pegou e supiu
nas escrada e os polisia supiran
tamben ai as polisias pegou na agansou
ai ele fujiram para rua e voi embora
e a mulher dele fica feliz e foram
embora .
(Paulo, 1ª série)
(2) Texto: Eu gostaria de ganhar um cavalo que o nome dele ia chama chita.
Eu gostaria de ganha
um cavalo.
Eu estava pensando que
eu tava sonhando que
eu estava muntado no
cavalo e ele correndo
comigo.
- Eu falei com o cavalo
chita vamos para ali .
Nos paramos e eu desca-
nssei o cavalo deitou
e dormiu .
Ai ele acordou e
eu e ele fomos lá pra
cima avo .[de novo]
Ai eu acabei a historia
Eu vou da uma lembran-
sinha para meu cavalo
chita eu gostaria
de verdade ganha
um cavalo prá
mim .
(Paulo, 2ª série)
(3) Era uma vez um pai chamado Gepeto
Gepeto vez um buneco de pao.
Quando Gepeto cabou de terminar o
Pinoquio mecheu o nariz , a boca , a perna e
Levantou e andou . quando seu pai
Segurou ele escapou para rua
tinha um quarda orientando o
transito e encontrou o pinoquinho
e puxou seu nariz , e o quarda de
o pinoquinho ao pai , e o pinoquinho
falou .
- Socorro , Socorro , e o
quarda prendeu o pai e ele
pinoquinho ficou fazendo
gagalhada , e rindo , O pai dele
ficou , ficou na cadeia , e depois
o soutou , ficou velhinho , Quan
do chegou en casa o Pinoquinho
disse .
- Não me Pati pai eu peso des-
cupa , agora indiante vou
ficar obidiente , vou estudar
fazer de tudo .
Quando chegou na
escola , o Paulinho disse :
- Pinoquinho vamos ao um
país cheio de brinquedo .
Pinoquinho falou .
- Não posso eu prometi
para meu pai que não vou
taria tarde de mais . Paulinho
disse x - Vamos , ele aceitou
e foi quando chegou lá
apareceu aquele homem falou
- Oba eu vou vender você
para o homem do comer-
cial . Vendeu , o comercial
não queria mais deu
para um homem , ele
Pinoquinho fugiu e
foi para casa .
(Paulo, 3ª série)
(4) Texto = sobre o tiatro
A minha tia Katia falou:
- Vamos fazer um teatro , nos fala
mos:
Vamos professora , fazer o tiatro ,
Vamos .
- Nos estavamos apresentando , para
nos apresentar no dia .
Ficamos apresentando na sala , foi
a maior bagunça .
A professora só falava com Diego
e o Março , O Morlean era outro , mais o Jefer
som , eles eram o mais baguncento da sala.
Ficamos apresentando na sala derrepe-
nte , ficamos todos queto e a professora fal-
ou :
- Vamos aprensentar lá em baixo ,
vamos todos para lá .
Chegou tudo correndo .
A professora falou :
- Mas qui verconha olha a bagun-
ça que vocês estão fazendo , nós falamos :
- A professora manda este dois guri par-
ar de conversar.
Ela falou :
- Vamos, vamos fazer o teatro , o
Diego e o outro Lucas , que eu não contei
no começo , ele ficava bagunçando também
Começando apresentar , vamos .
Chegou a minha hora de falar:
- Você tem pai , mãe , porque fugiu .
Eu falei assim:
- Professora eu só vou falar uma fala
Sim .
Na hora da apresentação eu faltei :
Porque estava estudando para prova .
Ela falou :
- Porque você não veio .
Se não minha mãe ia ficar mais eu
até 3 horas , eu estudando e ela achistindo .
Vi hoje dia 03 de dezembro , chegamos
aqui .
Entramos dentro da sala , Eu não
tia findo , mas eu fiço o dever , o Marcio
não queria , mas eu produzi .
Este texto
é para
Magda
(Paulo, 4ª série)
A análise dos quatro textos de Paulo sugere que as rupturas são cada vez mais pontuadas, à medida que avança o processo de escolarização.
Vejamos. O texto (1), apesar da extensão, está organizado em apenas três blocos de frases, apontando para uma busca inicial de alguma forma de segmentação do discurso e de seu fechamento. O uso da pontuação é, ainda, tímido. Os dois pontos intratextuais separam fases do texto ou conteúdos temáticos relativamente heterogêneos: o homem, a mulher e o serviço de garçon (situação inicial), uso de um ponto; a polícia e a perseguição (complicação e ações), uso de outro ponto; a fuga e o final feliz (resolução e situação final). O ponto final assinala o fechamento do texto. Temos, portanto, pontos situados nos lugares de duas rupturas importantes indicando que as pausas parecem atender mais à necessidade de partição do discurso do que a critérios de ordem sintática.
Quase um ano depois, Paulo produz o texto (2), ainda com o uso da estratégia de formação de blocos de frases, mas bem mais recortado por meio do sistema de pontuação. Nesse sentido, o processo dessa criança evidencia, por um lado, a ampliação na freqüência das marcas de pontuação e, por outro lado, a ampliação na freqüência dos blocos de frases. O número de pontos intrafrásicos utilizados sobe para seis e, como no texto anterior, situam-se em locais de maiores rupturas da trama textual. O primeiro ponto aparece logo após a orientação ou estado inicial. Essa proposição, que resume o relato, é repetida no segundo parágrafo, que também termina com um ponto. A seguir, encontramos um bloco de frases em que aparece um detonador das ações (o sonho) e a descrição de algumas dessas ações - a fase das ações; embora essa fase não esteja encerrada, há, nesse local, uma ruptura na trama textual na medida em que assinala o discurso direto (- Eu falei com o cavalo chita vamos para ali). Na seqüência, outro bloco de frases, descrevendo as ações. O bloco seguinte, iniciado por "Aí" parece inaugurar uma fase nova no relato - resultado, permitindo de certa forma que ele se encerre. Esse bloco encontra-se separado do estado final, ou coda, em que Paulo, ao mesmo tempo em que lexicaliza o seu retorno à perspectiva do aqui e agora, rompendo assim, com o desenvolvimento dos inter-acontecimentos (Aí eu acabei a história), volta ao mundo relatado oferecendo uma "lembrancinha" para o "seu cavalo".
Desse modo, a comparação dos textos (1) e (2) indica que, além das rupturas serem mais pontuadas no segundo ano de escolarização, são também mais pontuadas que outras passagens que marcam a continuidade de estados ou ações (por exemplo, Nos paramos e eu descanssei o cavalo deitou e dormiu).
Importante, ainda, ressaltar que cada um dos cinco blocos de frases, terminado por um ponto, representa um parágrafo formalmente assinalado (recuo na linha + letra maiúscula). Há, igualmente, uma tentativa de indicar o discurso direto (parágrafo + travessão), tentativa essa que é frustrada, do ponto de vista formal, mas que testemunha, os ensaios que a criança faz ao interagir com esse subsistema da escrita. Estas características marcam o segundo ano escolar como um momento importante na ampliação do sistema de pontuação, bem como, na sua normalização.
O texto (3) reafirma as considerações anteriores no que concerne a relação entre, de um lado, a expansão textual e a ampliação na freqüência das marcas e, de outro lado, o processo de escolarização. Cresce neste texto o número de pontos interfrásicos (9) e o número de blocos de frases (10). Há, ainda, a diversificação das marcas, com o aparecimento de dois pontos, travessões e vírgulas. O número de blocos de frases é, mais uma vez, coincidente com o número de parágrafos, fato que ilustra que esses últimos somam-se aos pontos para marcar os lugares de rupturas importantes no texto.
Assim, as mesmas observações a respeito da pontuação localizada nos locais de maiores rupturas do texto são válidas aqui, sendo, portanto, desnecessário insistir na análise. Por isso, passarei aos aspectos inéditos apresentados nessa produção.
Se olharmos o contexto de aparição dos pontos, nos renderemos à evidência de que estes situam-se, com raras exceções, no final das frases (simples ou complexas). Isso leva a pensar que as crianças são movidas por critérios sintáticos. Se assim fosse, todas as frases teriam necessariamente um ponto em seu final, o que não é confirmado pelo corpus. Pelo contrário: a frase tem um ponto se se encontra em um ponto de ruptura do texto, e não tem, quando não há ruptura. Aqui, mais uma vez, fica evidenciado que o ponto não é colocado em função de critérios sintáticos (delimitação da unidade frase), mas em função da estrutura do conteúdo. As partes dos textos parecem corresponder a momentos de ruptura na atividade de linguagem no nível da planificação e da gestão do texto. Schneuwly imagina esse procedimento como
um processo em anéis: sob o domínio de um objetivo geral [narrar uma história, por ex.], o aluno instancia uma primeira etapa e escreve, instancia uma segunda etapa e escreve, etc., com um mínimo de planificação global e de tomada em consideração do texto já escrito. Pode-se dizer que a gestão do texto é essencialmente cognitiva, definida pelo conteúdo do texto preestruturado em memória. O ponto aparece, desse modo, como o traço de rupturas do processo de produção textual. (grifos do autor). (Schneuwly, 1988:82).
Desse modo, encontram-se aqui delineadas duas formas de determinação para a utilização do ponto: por um lado, a forma frásica, dependente de operações de referenciação e de operações de conexão; de outro lado, as operações de planificação indicando que mudanças importantes no nível do conteúdo aumentam a probabilidade de utilização de pontos.
Nesse contexto, o aparecimento dos dois pontos é um outro aspecto a ser analisado. Note-se que Paulo sinaliza o discurso direto, por três vezes, com o ponto interfrásico (+ parágrafo, travessão, letra maiúscula). Em uma passagem, no entanto, aparecem os dois pontos, acompanhados dos outros elementos indicadores da fala do personagem. O mesmo discurso direto, em outra passagem, não é assinalado por qualquer ponto (mas conserva os outros elementos indicadores da fala). Por fim, na última passagem, vem acompanhado de um traço separador e, na mesma linha, o travessão e a letra maiúscula (Paulinho disse x - Vamos). Essas diferentes tentativas, ao mesmo tempo que corroboram a hipótese da pontuação indicativa de rupturas na trama textual, apontam para um processo de busca, dentro do subsistema, das melhores marcas para indicar os diferentes graus de rupturas.
É precisamente nesse quadro que se inscreve o uso (insistente!) da vírgula neste texto. Para analisar seu papel é necessário distinguir o contexto de sua aparição. A grande maioria das vírgulas usadas por Paulo nesse texto situa-se em lugares em que poder-se-ia esperar um ponto. É o que Schneuwly (1988:86) chama de vírgula interfrásica. Vejamos:
E depois o soutou , ficou velhinho , Quando chegou em casa o Pinoquinho disse.
- Não me Pati pai eu peso descupa , agora indiante vou ficar obidiente , vou estudar
fazer tudo .
(...) Vendeu , o comercial não queria mais deu para um homem , ele o Pinoquinho
fugiu e foi para casa .
Como interpretar esse uso consorciado do ponto e da vírgula? Tudo indica que nesse nível de desenvolvimento a criança elabora uma oposição para o funcionamento do sistema de pontuação: ruptura forte/ruptura fraca. Naqueles locais onde não há uma ruptura forte no nível do conteúdo a unidade frase representa uma unidade textual com ruptura fraca e é separada do que vem em seguida por uma vírgula interfrásica. (Schneuwly, 1988:87). Dessa forma, a criança diversifica as marcas tendo em vista diferentes graus de ligação entre os acontecimentos narrados.
Nesse mesmo contexto, o uso da vírgula aparece, ainda, associado ao conector "e", o que faz supor uma nuança nesse processo:
e encontrou o pinoquinho e puxou seu nariz , e o guarda de o pinoquinho ao pai , e o pinoquinho falou..
Trata-se, ainda, de uma vírgula interfrásica, mas aqui Paulo parece indeciso entre o uso da vírgula, que marcaria uma ruptura, e o uso do conector que religaria as ações mencionadas.
Há evidências de uma complexificação do sistema na medida que aparece a necessidade de segmentação no interior da unidade textual "frase", dando início a uma nova oposição: frase/proposição. Desse modo, a dupla pontos/vírgula se coloca a serviço da organização frásica do texto, em relação evidente com os organizadores textuais (empaquetage aditiva e integrativa): o ponto separa as frases, a vírgula intrafrásica separa as proposições. (Schneuwly, 1988:87).
Quando chegou na escola, o Pinoquinho disse:
Nessa passagem, a vírgula situa-se no interior da frase e a decompõe em proposições com um novo predicativo, evidência de um processo de planificação que incorpora novas relações hierárquicas entre as ações, para além da oposição ruptura forte/ruptura fraca.
Há ainda, outro uso intrafrásico da vírgula: aquele que separa os elementos de uma enumeração:
O pinoquio mecheu o nariz , a boca , a perna
O texto (4) caracteriza-se por uma sensível diminuição no número dos blocos de frases. Da mesma forma, cresce a freqüência e se amplia a variedade das marcas. A oposição ruptura forte/ruptura fraca, marcada respectivamente pelo ponto e pela vírgula, continua presente.
A vírgula aparece em um novo contexto, diferente dos anteriores. Trata-se, na perspectiva de Schneuwly, da vírgula intraproposicional - quando ela separa complementos circunstanciais, aposições, comentários, etc., que não têm uma forma proposicional:
- Vamos , vamos fazer o teatro , o Diego e o outro Lucas , que eu não contei no começo , ele ficava bagunçando também
A utilização dos parágrafos aparece aqui bastante consolidada, correspondendo à função definida nas diversas análises teóricas, ou seja, vinculada à idéia de unidade de informação, muito provavelmente por se tratar de um relato que prioriza o discurso direto. Os diálogos são, assim, em sua maioria representados com dois pontos, alínea, travessão, letra maiúscula.
De resto, no que concerne aos usos do sistema de pontuação, notadamente, do ponto interfrásico, nota-se que há uma aproximação significativa com a forma do adulto escrever, o que induz a constatação da preponderância dos aspectos sintáticos. Ao se analisar um texto nessas condições corre-se o risco de se ver reforçada a idéia de que a aprendizagem do sistema é meramente direcionada por critérios sintáticos. Só uma análise do processo pode elucidar alguns aspectos que aí ficam subsumidos. Isso significa, sem dúvida, um maior domínio dos usos canônicos do sistema de pontuação. Mas significa, igualmente, a existência de fenômenos ainda pouco estudados.
A convivência, por exemplo, da subpontuação e da utilização dos parágrafos é um indicador de que a aparição do ponto nas rupturas fortes do texto não é, simplesmente, o resultado de uma marcação de partes do texto, mas, sobretudo, o efeito de um processo de planificação. Dividir o texto por meio de parágrafos implica na existência de um controle continuado da escrita, não mais somente no nível do encadeamento dos enunciados, mas também no nível de uma estruturação mais global, que permite marcar partes de texto por unidades particulares.(Schneuwly, 1988:85). A utilização do parágrafo deixa de ser estruturada pelo desenvolvimento da produção do texto, tornando-se estruturante, dando uma forma ao texto, marcando as fases do texto. Nesse novo funcionamento, operações de planificação e de conexão/segmentação integram um novo nível de planificação, marcado pelo desaparecimento da dependência direta da pontuação forte e pelo funcionamento dos organizadores textuais para a constituição de unidades textuais do tamanho da frase por "empaquetage" integrativa e aditiva.
Em síntese
A análise revelou que as marcas de pontuação exprimem o grau de ligação entre os acontecimentos. O impacto do grau de ligação é muito importante e, sobretudo, muito precoce: desde a 1ª série a criança utiliza o ponto (final e interfrásico). Trata-se ainda de um emprego solitário, marcado pela ausência de uma oposição que outra marca poderia proporcionar. Assim, a preponderância deste tipo de marca nesta série, em alguma medida relacionada com o parágrafo, tem como função assinalar uma ruptura inter-acontecimento entre dois enunciados sucessivos.
A partir da 2ª série, o paradigma se diversifica, notadamente pela ampliação na freqüência das marcas e pelo aparecimento da tentativa em assinalar o discurso direto.
A 3ª e 4ª série mostram como, gradativamente, esse sistema se expande e se normaliza. Aparecem a vírgula, os dois pontos, o travessão. Isso significa a introdução de um sistema de oposições que parece corresponder ao desenvolvimento de capacidades crescentes para hierarquizar a importância (relativa) de informações no seio de um texto e os usos se aproximam da forma do adulto escrever. Desse modo, a análise do período como um todo revela que a linha evolutiva segue rumo à diversificação e normalização das marcas. Isto, porém, não significa que o processo esteja concluído. Interessante salientar como, especialmente na 4ª série, cresce o uso dos sinais indicadores de diferentes formas de enunciação, em especial os dois pontos. Isto, sem dúvida, reflete formas mais elaboradas de planejamento e evidencia, na superfície textual, as intenções enunciativas do sujeito. O autor assume um ponto de vista enunciativo e é capaz de orquestrar as diferentes vozes no interior do texto. Por outro lado, a interrogação, a exclamação, as aspas, que enriqueceriam essas formas de enunciação, e o ponto e vírgula, que poderia marcar uma nova oposição são os grandes ausente no processo de Paulo, o que evidencia o percurso ainda a ser trilhado.
Vejamos como Schneuwly (1988:83) explica este processo. Seus resultados o levam a concluir que alunos de 10 anos (4ème) pontuam seus textos tendo por base, preponderantemente, as operações de planificação (rupturas, passagens de uma parte do texto a outra aumentam fortemente a probabilidade de utilização dos pontos), em detrimento das operações de referenciação e conexão (forma frásica); nos alunos de 12 e 14 anos (6ème e 8ème), os dois fatores parecem ter um papel importante e independente um do outro; nos adultos, finalmente, não há mais distinção possível entre operações de planificação e de segmentação, no que diz respeito à utilização dos pontos.
O autor atribui essas mudanças a transformações nas operações de planificação e de textualização e, conseqüentemente, em suas relações. Essa transformação é definida como autonomização de níveis, já que, por um lado, a planificação torna-se menos dependente da pré-estruturação cognitiva (macro-estrutura), tornando-se mais planificação super-estrutural, articulada, por intermédio de modelos de linguagem, ao objetivo e ao destinatário e, por outro lado, a textualização, e mais particularmente as operações de conexão e de segmentação, seguem sua própria lógica: formação de unidades textuais do tamanho da proposição, da frase, da alínea, etc., traduzindo assim em outro nível autônomo, escolhas feitas no nível das operações de referenciação e de gestão textual. Nesse nível, o controle da atividade é essencialmente interior, dada a ausência de efeito imediato sobre a situação, o que permite ao autor supor que essa autonomização é, ao mesmo tempo, efeito e pressuposto de um funcionamento monogerado.
Esta análise, como vimos, confirma a linha evolutiva sugerida por Schneuwly, mas possui a singularidade de apresentar os níveis em idades bem mais precoces em relação às avaliadas por este autor. Por exemplo, o aparecimento precoce da vírgula, (desde a 3ª série, 9 anos), a consolidação do parágrafo e ampliação de outras marcas como o travessão e os dois pontos indicadores do discurso direto (na 4ª série, 10 anos) sugerem que o processo de autonomização das operações de planificação pode acontecer mais cedo.
Deste modo, os índices encontrados nos textos, que sugerem um processo de autonomização das operações de planificação mais precoce, são, realmente, uma agradável surpresa revelada pela pesquisa. É evidente que alguns aspectos devem ser ressaltados: o principal deles diz respeito ao tipo de texto: especificidades encontradas por Schneuwly no funcionamento dos textos informativos e argumentativos (por ex., o menor número de vírgulas em textos argumentativos) apareceriam, igualmente, nos textos narrativos? A macro-estrutura da narrativa, com seus encadeamentos de ações, proporcionaria uma aceleração no processo de autonomização progressiva de diferentes instâncias de operações de linguagem? Em segundo lugar, as especificidades, sempre presentes nos processos individuais, sugerem diferenças no processo de apropriação.
Em decorrência disto teríamos, em terceiro lugar, implicações de grande porte para o ensino. Os aspectos aqui trabalhados, e tantos outros que não pude desenvolver, me encaminham para duas ordens de observações. Por um lado, no que diz respeito à apropriação pela criança, a pontuação não me parece ser um subsistema a ser adquirido mais tarde, uma vez que, mesmo estando longe de se realizar sob as formas canônicas, ela se faz presente desde as primeiras tentativas de escrita; e ainda mais que isso, desde as primeiras realizações textuais, função sintagmática, função polifônica e função textual se interpenetram. Por outro lado, essas constatações sugerem o quanto é infundada a prática de intervenção pedagógica no nível de frases, uma vez que só o trabalho com o texto como um todo proporcionará maiores chances de a criança perceber diferentes posicionamentos enunciativos, motivando assim, a pontuação precoce.
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